sábado, 15 de maio de 2021

A Falsa Abolição ou a Farsa da Abolição: O Dia 14 de Maio

 Jomo de O. Campos e Regina Silva

O Professor Milton Santos, geógrafo, negro, um dos maiores cientistas do Brasil e do mundo, quando perguntado sobre o que significa ser negro no Brasil, respondeu que “ser negro no Brasil é ser com frequência objeto de um olhar enviesado”, havendo para nós negros e negras um lugar predestinado, lá embaixo, na base da pirâmide. O lugar da subalternidade.



Para que o negro saísse desse lugar que lhe foi reservado, foram séculos de lutas e os indicadores sociais atuais referentes à população negra indicam que ainda há um longo caminho a ser percorrido. Antes de chegarmos a tais dados, faremos uma breve exposição sobre a trajetória do negro na História do Brasil.

No Período Colonial, os africanos trazidos ao Brasil vinham de lugares distintos do continente africano. A maioria veio da região localizada ao sul do Equador, pelos portos de Luanda, Benguela e Cabinda. Uma outra parte é proveniente da Costa da Mina e a outra parte de Moçambique. Seus nomes originais, os nomes relacionados a seus grupos étnicos foram apagados e em seu lugar lhes foram atribuídos nomes de acordo com a região onde haviam sido embarcados. 



De acordo com Davi Eltis, entre 1500 e 1867 foram extraídos das costas africanas cerca de 12,5 milhões de africanos escravizados. Desse montante, cerca de 4,9 milhões foram desembarcados no Brasil. 

O tempero do mar foi lágrima de preto

Emicida, “Boa Esperança”

Muitos morreram na travessia. A jornada poderia durar cerca de 30 dias ou mais e as condições eram precárias: má alimentação, impossibilidade de cuidar da higiene, estupros, espancamentos. Houve aqueles que, no momento oportuno, cometiam suicídio (inclusive mulheres e suas crianças), pois era preferível isso à humilhação.


No que diz respeito ao trabalho, os africanos poderiam ser submetidos a uma rotina de mais de 15 horas por dia. A partir da compilação de inúmeras fontes, a historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwartz mostra que no último quarto do século XIX, a expectativa de vida dos escravizados variava de 19 a 21 anos de idade e a expectativa de vida de um não-escravo estava em torno de 27 anos. Da Colônia ao Império, a vida dos não-escravos eram ruins para boa parte da população mas muito piores para os escravizados. A partir dessas informações e de outros estudos, tem-se que o regime escravista, sob tais condições, não se sustentaria sem a contínua reposição de escravos.

Os escravizados resistiram? Reagiram? Sim. Assim como a “democracia racial” e a “não existência do racismo” são mitos, a passividade dos negros ou, pior, a “cumplicidade” no escravismo observado no Brasil - como se africanos negros  tivessem tido o mesmo peso, a mesma dominância de brancos escravocratas - também são mentiras. E é muito importante não confundir a reação violenta do oprimido com a violência sistemática do opressor.


        Há um discurso recorrente ainda hoje em que brancos atribuem aos negros o “dever” de serem mais comedidos em suas demandas e lutas, serem mais pacientes, “oferecerem a outra face”. Se essa tivesse sido a atitude tomada pelos africanos escravizados, Quilombos não existiriam. Se indígenas tivessem sido passivos ou dóceis diante da destruição de sua cultura, da escravidão e roubo de suas terras, não existiriam Reservas. Se indígenas e negros fossem “passivos” e “dóceis”, não estariam lutando em 2021 para não serem exterminados; não estariam lutando por emprego, educação, moradia, saúde e segurança. “Ah, mas todo mundo está lutando por isso!”. Sim. Mas não somos socialmente iguais; não existe, historicamente, simetria entre negros, brancos e indígenas em sociedades oriundas de um processo de colonização.



Quando saímos do Período Colonial e adentramos o século XIX, nos I e II Reinados, do ponto-de-vista institucional, é importante frisar que a primeira Lei de proibição ao tráfico de escravos foi sancionada em 07 de Novembro de 1831 e foi chamada de “Lei pra inglês ver”. Acesse o link abaixo para ler a Lei na íntegra:

Lei de 7 de Novembro de 1831

 Por que? Porque simplesmente foi ignorada. O que os ingleses tiveram a ver com isso? Desde quando a família real portuguesa se retirou da Europa rumo ao Brasil em 1808, apoiada pela Inglaterra, por conta das Guerras Napoleônicas, havia uma pressão para que os portugueses acabassem com o tráfico de escravos e a escravidão nas suas colônias, em favorecimento da ampliação de um mercado consumidor com a “parceira” Inglaterra. Só a partir de 1850, com a Lei Eusébio de Queiróz, o tráfico de escravos foi proibido de fato. 



Em 1850, foi sancionada a Lei de Terras (Lei Nº 601, 18 de Setembro de 1850). Essa foi a primeira iniciativa tomada para a regulamentação de terras justamente no mesmo ano em que a Lei Eusébio de Queiróz foi sancionada. Essa Lei é fruto da articulação de políticos e latifundiários para evitar que negros livres tivessem acesso legal à terra. Um outro golpe foi substituir a mão de obra escravizada por mão de obra livre branca, imigrante. Resumidamente, com a Lei de Terras só seria possível adquirir terras mediante compra, venda ou doação do Estado e, como se viu, pouquíssimas pessoas tinham capital, recursos para adquirir terras. É seguro dizer que as origens da concentração de terras no Brasil e os impasses da Reforma Agrária ainda observados em 2021 estão aí.

No que diz respeito às “Leis abolicionistas”, citam-se: 

  • Lei do Ventre Livre, de 1871

  • Lei dos Sexagenários, de 1885

 


Em 13 de Maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea e libertou todos os escravos do Império do Brasil.

Vocês já devem ter ouvido essa narrativa inúmeras vezes no seu tempo de escola e, muito provavelmente, pode ter cristalizado essa informação como correta pelo grande número de repetições a que foram expostos. 



Agora, em 2021, completam-se 133 anos da assinatura da Lei Áurea e o que a sociedade brasileira reflete é que esse tempo foi insuficiente para destruir o abismo socioeconômico criado entre brancos e negros. O acesso aos direitos básicos ainda é dificultado para pessoas negras e os indicadores sociais em educação, saúde, moradia, segurança, lazer, entre outros, representam dois Brasis - o Brasil dos brancos e o Brasil dos negros. 


No Brasil dos negros, a chance de ser analfabeto é cinco vezes maior do que no Brasil dos brancos.

O Brasil dos brancos representa 75% dos estudantes do Ensino Superior.

No Brasil dos negros, 60% das pessoas estão abaixo da linha da pobreza enquanto no Brasil dos brancos, 80% das pessoas compõem o grupo das pessoas mais ricas.

No Brasil dos brancos, em 70% dos lares há uma máquina de lavar, enquanto no Brasil dos negros, quase 40% dos lares não possui sequer uma rede de esgoto.

Em relação à Internet, indispensável neste contexto de pandemia para o trabalho ou ensino remoto, no Brasil dos negros, 51,3% da população não tem acesso enquanto no Brasil dos brancos esse número cai para 38,9%. Ainda sobre a situação pandêmica, em que a população brasileira vem sofrendo com o caos na saúde e na economia, 70% das pessoas que dependem do SUS são negras, população também mais atingida pelo desemprego e maioria entre aqueles que têm menos estrutura para se proteger, figurando assim, entre os que mais morrem. Os negros são os que mais morrem porque saem para trabalhar, usam transporte público lotado e moram em condições que não permitem o distanciamento social. Além disso, a taxa de desocupação da população negra é 58% superior à dos brancos. 




Que abolição foi essa que no dia 14 de maio de 1888 não garantiu aos libertos a possibilidade de inserção no sistema escolar e no trabalho assalariado? Que não ofereceu nenhuma condição de moradia, fazendo com que essa vultosa população se refugiasse nas áreas periféricas sem investimento e interesse social dando origem às favelas? Até a assinatura da Lei Áurea, a prática da capoeira era punida com 300 chibatadas e calabouço. A partir de 1890 até 1937, o decreto nº 847 colocou a capoeira no Código Penal com pena de reclusão de dois a seis meses, ou seja, a presença negra na cidade foi criminalizada. Algumas províncias, como Rio de Janeiro, Alagoas, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, proibiam a matrícula em escolas públicas de pessoas com doenças contagiosas e também de negros. Qual a perspectiva de igualdade de direitos entre brancos e negros com esse cenário? Sabendo que a mão-de-obra escravizada foi substituída pela de imigrantes europeus e que o Estado brasileiro investia explicitamente para embranquecer a nação, inclusive em alguns momentos com o incentivo da miscigenação para eliminação gradual segmento negro e com a sofisticação do projeto de encarceramento e genocídio da população negra. 





Diante do exposto acima, podemos refletir sobre quais narrativas tem se perpetuado no espaço escolar nestes 133 anos dessa falsa abolição. Abolição que ainda dificulta o acesso da população negra à educação, física e simbolicamente, pois além da população negra ser maioria nas escolas com maiores problemas de infraestrutura e em bairros com mais déficit socioeconômico, o currículo escolar ainda reproduz estereótipos sobre as histórias e as culturas afro-brasileiras e africanas, com narrativas que associam o continente africano ao atraso, à subordinação e à miséria, invisibiliza o protagonismo no desenvolvimento científico e tecnológico universal.





Quando estes temas são abordados só enfatizam as contribuições culturais, muito importantes, mas que são subalternizadas e não contemplam toda a história. Cabe à sociedade refletir e provocar mudanças para que as políticas públicas viabilizem a equidade, iniciando por ações que proporcionem uma reparação histórica à população negra. E é papel de educadores e educadoras (e do Poder Público) garantir a efetividade da implementação da lei 10.639/03 para que as pessoas sejam educadas na perspectiva da educação antirracista e educação das relações étnico-raciais para construirmos uma sociedade com justiça social.






Referências consultadas e indicações:



8 comentários:

  1. Abimara Goulart Silva16 de maio de 2021 às 07:14

    Maravilhoso texto! Obrigada por sempre nos ajudar a enxergar e nos colocar pontos antes não vistos.

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  2. Luta, Resistência e Resiliência. Nossa história, trajetória e memória de povo preto explicitadas com excelência. Parabéns Regina Silva e Jomo O. Campos.

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  3. Que texto sensacional!!!! Vou divulgar muito, muitas pessoas desconhecem essa trajetória de luta e resistência da população negra.

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  4. Parabéns pelo texto! Muito enriquecedor!

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  5. Parabenizo os autores pelo ótimo e reflexivo texto sobre a nossa realidade. Nos fechamos tanto em nosso mundo que não vemos o quanto ainda temos que percorrer para a tão sonhada liberdade de fato!

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  6. Como é salientado no texto no Brasil dos Negros somos carentes de tudo, inclusive de uma internet razoável. Poucos negros terão acesso a esta matéria. Parabéns

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  7. Excelente material para pesquisa. Muito obrigada.

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  8. Sempre precisos em suas colocações!

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