No
Brasil Império, a Constituição de 1824 estabeleceu uma cidadania com base em
dados censitários, dividindo os cidadãos (pessoas nascidas no Brasil e
estrangeiros naturalizados) a partir de suas rendas, em três categorias:
cidadãos reconhecidos que não podiam votar e nem se candidatar, os que apenas
podiam votar e aqueles que podiam votar e se candidatar. No entanto, conforme a
ascensão da renda, o cidadão poderia galgar posições. No caso dos libertos, à
exceção dos africanos, o grau máximo que podiam atingir era o de votantes, os
ex-escravos sofriam restrições políticas, mas é importante destacar que não
eram hereditárias e, se não tivessem filhos com escravas (devido à linha de
transmissão matrilinear) podiam chegar a cidadãos.
Entretanto,
podemos falar em práticas educacionais referentes aos negros mesmo antes do
término da escravidão (1888), pois Lei do Ventre Livre Livre consistia em
considerar livres os filhos das escravas nascidos a partir de sua promulgação,
no ano de 1871, ressaltando que antes dessa lei, toda criança nascida de uma
escrava herdava essa mesma condição, sendo já, propriedade do senhor (dono de
escravo) de sua mãe.
Os anos de 1850 a
1888 foram marcados por um intenso debate sobre a abolição da escravidão, sendo
o ano de 1871, um dos momentos capitais dado que se discutia a libertação das
crianças nascidas de escravas – a libertação do ventre como se costumava dizer
na época (FONSECA, 2001).
Naquele
momento foi uma mudança drástica visto que a única forma de se conseguir novos
escravos legalmente, após a proibição do tráfico negreiro em 1850, era a partir
do nascimento de filhos de escravas. Foi uma iniciativa que demonstrava a forte
determinação de abolir o trabalho escravo gradativamente e substituí-lo pelo
trabalho assalariado. Perdigão Malheiros, historiador e jurisconsulto da época,
grande defensor da libertação do ventre, foi também um dos primeiros a perceber
que a abolição da escravidão traria um grande impacto à educação, porque já
questionava que tipo de ensino deveria ser dado a esses futuros cidadãos do
Brasil Imperial. Segundo ele, deveria ser uma educação que considerasse os
aspectos moral, religioso e de ensino de ofícios.
Na perspectiva
apresentada por Malheiros, a libertação do ventre e a educação são articuladas
de forma clara, sendo que a educação chega até mesmo a ser tratada como uma
dimensão complementar do processo de abolição do trabalho escravo. Portanto, em
meio às discussões que começavam a difundir a ideia e a necessidade de
estabelecer a libertação das crianças nascidas de escravas, educação e
emancipação eram vinculadas como parte do processo geral de preparação dessas
crianças para o exercício da liberdade (idem).
No
entanto, essa preocupação traduziu-se concretamente com a questão: o que fazer
com os novos membros livres na sociedade? E não com as perspectivas a serem
criadas para as crianças nascidas livres a partir daquele momento. Em algum
momento o projeto de acabar com a escravidão ocorreria “naturalmente”, com a
proibição do tráfico, a libertação do ventre e o envelhecimento dos escravos em
atividade. Uma questão pouco discutida e de profundas consequências foi a de
como as crianças negras livres seriam assistidas, pois o projeto de Lei do
Ventre Livre deixava pouco explícito que os senhores das mães escravas ficariam
responsáveis em providenciar a educação elementar dessas crianças:
Art. 1.º - Os filhos
de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão
considerados de condição livre.
§ 1.º - Os ditos
filhos menores ficarão em poder ou sob a autoridade dos senhores de suas mães,
os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos
completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá
opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos
serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo
receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. (BRASIL,
Lei nº 2.040/1871)
Alguns
setores reivindicavam que os senhores deveriam ter a obrigatoriedade de
proporcionar às crianças livres a educação elementar para prepará-las para a
vida em liberdade. De modo geral, porém, isso era um enorme problema, sendo que
havia muitos defensores dos senhores de escravos entre os parlamentares e que
não apoiavam o fato de que estes devessem arcar com esses custos. Em um parecer
enviado à Câmara dos Deputados, datado de 1870, manifesta-se claramente a posição
dos senhores de escravos de que “a libertação do ventre não poderia vir
associada a uma mudança efetiva do status das crianças que nasceriam livres”
(FONSECA, 2001), exemplificado pelo deputado Rodrigo A. Silva que defendia dois
tipos de conduta dos proprietários de escravos: um rigoroso para os ainda
escravos e outro mais condescendente para os livres. Mas o próprio deputado
chamava a atenção para as possíveis consequências dessa ação. Um impasse, pois
as práticas diferenciadas com o novo status das crianças nascidas livres fora
do trabalho produtivo para receber uma instrução poderia causar discórdia entre
os escravos que continuassem sem qualquer tipo de benefício.
Sendo
assim, cria-se a distinção entre criar e educar, e o que se seguiu foi que
essas crianças poderiam ficar sob posse dos proprietários de suas mães até os 8
anos de idade e a esse senhor de escravo era oferecida duas opções: a de
permanecer com a criança até que esta completasse 21 anos, podendo utilizá-la
no trabalho, isto é, criando-a ou de entregá-la ao Estado mediante indenização
significativa e, nesse caso, a criança não poderia ser tratada como escrava e,
sim, enviada a instituições responsáveis, como o Asylo Agrícola Isabel, no Rio
de Janeiro, por educá-la e criá-la. No caso da criança que o senhor de escravo
preferisse criar, sua liberdade só se concretizaria a partir dos 21 anos.
Contudo, o número de crianças que foram entregues a essas instituições
educacionais foi muito pequeno em relação ao número de nascimentos registrados
entre os filhos de escravas: de 1871 a 1884, das 113 crianças entregues ao
Estado, apenas 21 encontravam-se na província do Rio de Janeiro, onde havia um
total de 82.566 crianças nascidas livres de escravas.
Foi
uma tentativa de política pública voltada para o negro no período de abolição
do trabalho escravo ligada à educação, todavia, sem grande impacto na estrutura
social já que havia fortes interesses escravistas nos setores do Império. O
resultado foi uma abolição do trabalho escravo de cunho excludente, porém, com
a consciência do papel de relevância da educação na inclusão social do negro.
O que nos leva a crer
que, entre essa consciência e atitude de não tornar a educação um bem acessível
aos indivíduos oriundos do cativeiro, o que verdadeiramente se construiu foi a
determinação de incluir os ex-escravos e seus descendentes de forma
absolutamente marginal na sociedade organizada a partir do trabalho livre
(FONSECA, 2001).
Temos,
então, um breve quadro de como iniciou o processo de inclusão educacional do negro
durante a abolição da escravidão, considerando-se que o Império determinou a
criação das escolas de primeiras letras em 1827. É sabido que o Brasil foi o
último país a abolir definitivamente a escravidão e que o processo de
integração do negro na sociedade capitalista que se formara ainda não está
concretizado.
Fonte:
As primeiras práticas educacionais com características modernas em relação aos
negros no Brasil, de Marcus Vinicius da Fonseca in “Negro e Educação: presença
do negro no sistema educacional brasileiro”, ANPED e Ação Educativa, 2001.
(*Excerto
de trabalho de conclusão de curso apresentado na Especialização em Magistério
do Ensino Superior, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP,
em 2008)
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