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sábado, 6 de fevereiro de 2016

Literatura Infantil e Educação das Relações Étnico-Raciais


[...] a literatura vem ocupando um lugar importante nesse cenário, em virtude de seu caráter mágico, ficcional e também discursivo, ou seja, pode-se introduzir discursos afirmativos, humanizadores, sobre diferenças tratadas de forma desigual no contexto social no qual alunos e docentes vivem e se realizam como sujeitos no mundo. (MARTINS; GOMES, 2010, p. 144).
Relato de prática referente ao Projeto Igualdade na Diversidade - realizado com duas turmas de 5 anos na rede pública municipal de Santo André:


O presente projeto tem a intenção de explorar a história e a cultura afro-brasileiras e africanas presentes em obras de literatura infantil possibilitando que as crianças iniciem a construção de um repertório positivo da população negra.
O objetivo principal é construir referenciais para inserção dos princípios da educação das relações étnico-raciais e a construção de uma imagem positiva da população negra, primordial para crianças negras e não-negras.
A principal motivação para o desenvolvimento deste projeto surge ao perceber como as crianças da minha turma apresentavam muitos referenciais de princesas e de heróis, mas nenhum deles era negro. É uma turma que apresenta uma característica de diversidade étnico-racial, no entanto, para algumas crianças, parecia novidade interagir com uma professora negra devido a muitas falas referentes à cor da minha pele ou ao meu cabelo: “Ah, pro, por que você é preta?”, “Pro, você é morena?”, “Pro, porque seu cabelo está assim?” e a partir das minhas respostas, sempre com muita abertura e tranquilidade, algumas crianças chegavam a vir perguntar que cor elas tinham ou mesmo seus pais. 
 

O Baú das Histórias, de Gail E. Haley - Editora Global


Foi bastante interessante o caso de uma aluna, fruto de um relacionamento inter-racial, cuja mãe é negra e o pai, branco. A menina sempre vinha me dizer que eu parecia com sua mãe, mas dizia que sua mãe era morena. Quando ela se referia a mim como morena, eu dizia: “Mas eu não sou morena, eu sou negra.” Ela olhava e estranhava: “Mas minha mãe é morena...” Eu nunca falei o que eu achava sobre o pertencimento étnico-racial da mãe dessa aluna, mas depois de várias vezes vindo me perguntar, ela começou a dizer: “Pro, você é negra, né?”. Pra mim, já era uma vitória!

As preferências na turma quanto às personagens mais queridas e foco de muitas brincadeiras são bem demarcadas pelo gênero: os meninos adoram os super-heróis e as meninas, as princesas. Todos brancos. Talvez pelas crianças não terem tido contato com algum referencial negro que fosse positivo e significativo a ponto de fazerem parte de seu repertório. 

Construindo uma hipótese sobre o que faltava, o suporte da literatura infantil seria importante para auxiliar na formação de um novo repertório a partir de histórias com personagens negras em situações diversas para não enfatizar somente o preconceito, mas também, para combatê-lo, as obras ligadas a história e cultura afro-brasileiras seriam primordiais.


Regina e o Mágico, de Sonia Junqueira e Ilustrações de Alcy - Editora Ática


É fundamental que a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/realidade social/diversidade étnico-racial e cultural e para isso é preciso que nós, educadores (as), compreendamos que o processo educacional também é formado por dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a cultura, as relações raciais, entre outras. E trabalhar com essas dimensões não significa transformá-las em conteúdos escolares ou temas transversais, mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes da nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no próprio cotidiano escolar.

Dessa maneira,
  poderemos construir coletivamente novas formas de convivência e de respeito entre professores, alunos e comunidade. É preciso que a escola se conscientize cada vez mais de que ela existe para atender a sociedade na qual está inserida e não aos órgãos governamentais ou aos desejos dos educadores (GOMES in MUNANGA, 2005, p. 148).

É muito comum presenciar divulgações de eventos e cartazes produzidos pelas crianças pelas professoras, equipe gestora e pelas crianças no ambiente escolar. Também é frequente observar que nessas produções há pouca ou nenhuma representação de pessoas negras. Estas produções tornam-se modelo para as crianças e se elas nunca se identificam com as pessoas representadas, podem começar a assimilar o ideal de beleza imposto nos veículos de imprensa e que, de maneira alguma, podem ser ratificados pela instituição escolar. Na literatura infantil, esse padrão acaba sendo veiculado em demasia fazendo com que as crianças associem princesas, príncipes e heróis a personagens brancas e beleza a brancura. Os elementos da negritude, como a cor da pele ou os cabelos crespos acabam figurando em poucas situações na escola, o que pode reforçar o ideal difundido pela mídia.

Sendo a escola uma instituição responsável pela formação cidadã e tendo a Educação Infantil um de seus principais objetivos a construção de uma autoimagem positiva de si, não há possibilidade de furtar-se à responsabilidade de combater os estereótipos e oferecer um repertório variado às crianças quanto à diversidade étnico-cultural brasileira.

Os currículos e práticas escolares que incorporam essa visão de educação tendem a ficar mais próximos do trato positivo da diversidade humana, cultural e social, pois a experiência da diversidade faz parte dos processos de socialização, de humanização e desumanização. A diversidade é um componente do desenvolvimento biológico e cultural da humanidade. Ela se faz presente na produção de práticas, saberes, valores, linguagens, técnicas artísticas, científicas, representações do mundo, experiências de sociabilidade e de aprendizagem (GOMES, 2008, p. 18).

 Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado e Ilustrações: Claudius - Editora: Ática



 

Nesta perspectiva, o projeto Igualdade na Diversidade tem como uma de suas principais estratégias: explorar a temática étnico-racial presente em obras de literatura infantil, bem como selecionar obras que representem a diversidade da população brasileira em obras de temática variada, sem estereótipos, possibilitando que as crianças construam um repertório positivo da cultura e história afro-brasileira.

Entendendo, assim, a importância do papel dos (as) educadores (as) na compreensão do processo de classificação e hierarquização decorrentes do racismo abre-se a possibilidade de discutir e intervir no impacto na autoestima das crianças e a importância de refletir sobre a cultura negra, adotando práticas pedagógicas comprometidas com o combate à discriminação racial, à “naturalização” das diferenças e a diversidade da cultura brasileira. É imprescindível um posicionamento da escola à adoção de propostas multiculturais e/ou interculturais e que o currículo contemple a inserção da cultura negra.


O Menino Nito, de Sonia Rosa e Ilustrações de Victor Tavares - Editora: Pallas

Esperava-se ao longo do projeto observar maior receptividade das crianças às personagens negras da literatura infantil, tanto de temas variados como em abordagens específicas da história e cultura afro-brasileiras e africanas. Tenho ouvido mais vezes frases como: “Nossa, essa menina é linda!”, “O meu cabelo parece com o dele!” e menos “Que cabelo feio!”, “Ela não é bonita, pro!” ao apresentar personagens negras das histórias lidas e é um processo que se inicia e deve ter continuidade com outras ações, pois Munanga (2004) afirma que a construção da identidade é um processo, não um produto. Assim, a responsabilidade da escola se amplia, pois os objetivos relacionados à identidade figuram de modo explícito no currículo da Educação Infantil.