[...] a literatura vem ocupando um lugar importante nesse
cenário, em virtude de seu caráter mágico, ficcional e também discursivo, ou
seja, pode-se introduzir discursos afirmativos, humanizadores, sobre diferenças tratadas de forma desigual no contexto
social no qual alunos e docentes vivem e se realizam como sujeitos no mundo.
(MARTINS; GOMES, 2010, p. 144).
Relato de prática referente ao Projeto Igualdade na Diversidade - realizado com duas turmas de 5 anos na rede pública municipal de Santo André:
O presente projeto tem a intenção de explorar a história e a cultura
afro-brasileiras e africanas presentes em obras de literatura infantil
possibilitando que as crianças iniciem a construção de um repertório positivo
da população negra.
O objetivo
principal é construir referenciais para inserção dos princípios da educação das
relações étnico-raciais e a construção de uma imagem positiva da população
negra, primordial para crianças negras e não-negras.
A principal motivação para o desenvolvimento deste
projeto surge ao perceber como as crianças da minha turma apresentavam muitos
referenciais de princesas e de heróis, mas nenhum deles era negro. É uma turma
que apresenta uma característica de diversidade étnico-racial, no
entanto, para algumas crianças, parecia novidade interagir com uma professora
negra devido a muitas falas referentes à cor da minha pele ou ao meu cabelo: “Ah,
pro, por que você é preta?”, “Pro, você é morena?”, “Pro, porque
seu cabelo está assim?” e a partir das minhas respostas, sempre com muita
abertura e tranquilidade, algumas crianças chegavam a vir perguntar que cor
elas tinham ou mesmo seus pais.
O Baú das Histórias, de Gail E. Haley - Editora Global |
Foi bastante
interessante o caso de uma aluna, fruto de um relacionamento inter-racial, cuja
mãe é negra e o pai, branco. A menina sempre vinha me dizer que eu parecia com
sua mãe, mas dizia que sua mãe era morena. Quando ela se referia a mim como
morena, eu dizia: “Mas eu não sou morena, eu sou negra.” Ela olhava e
estranhava: “Mas minha mãe é morena...” Eu nunca falei o que eu achava sobre o
pertencimento étnico-racial da mãe dessa aluna, mas depois de várias vezes
vindo me perguntar, ela começou a dizer: “Pro, você é negra, né?”. Pra
mim, já era uma vitória!
As preferências na
turma quanto às personagens mais queridas e foco de muitas brincadeiras são bem
demarcadas pelo gênero: os meninos adoram os super-heróis e as meninas, as
princesas. Todos brancos. Talvez pelas crianças não terem tido contato com
algum referencial negro que fosse positivo e significativo a ponto de fazerem
parte de seu repertório.
Construindo uma
hipótese sobre o que faltava, o suporte da literatura infantil seria importante
para auxiliar na formação de um novo repertório a partir de histórias com
personagens negras em situações diversas para não enfatizar somente o
preconceito, mas também, para combatê-lo, as obras ligadas a história e cultura
afro-brasileiras seriam primordiais.
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É fundamental que
a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/realidade
social/diversidade étnico-racial e cultural e para isso é preciso que nós,
educadores (as), compreendamos que o processo educacional também é formado por
dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a
sexualidade, a cultura, as relações raciais, entre outras. E trabalhar com
essas dimensões não significa transformá-las em conteúdos escolares ou temas
transversais, mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos
constituintes da nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no próprio
cotidiano escolar.
Dessa maneira,
poderemos construir coletivamente novas formas de convivência e de respeito
entre professores, alunos e comunidade. É preciso que a escola se conscientize
cada vez mais de que ela existe para atender a sociedade na qual está inserida
e não aos órgãos governamentais ou aos desejos dos educadores (GOMES in
MUNANGA, 2005, p. 148).
É muito comum
presenciar divulgações de eventos e cartazes produzidos pelas crianças pelas
professoras, equipe gestora e pelas crianças no ambiente escolar. Também é
frequente observar que nessas produções há pouca ou nenhuma representação de
pessoas negras. Estas produções tornam-se modelo para as crianças e se elas
nunca se identificam com as pessoas representadas, podem começar a assimilar o
ideal de beleza imposto nos veículos de imprensa e que, de maneira alguma,
podem ser ratificados pela instituição escolar. Na literatura infantil, esse
padrão acaba sendo veiculado em demasia fazendo com que as crianças associem
princesas, príncipes e heróis a personagens brancas e beleza a brancura. Os
elementos da negritude, como a cor da pele ou os cabelos crespos acabam
figurando em poucas situações na escola, o que pode reforçar o ideal difundido
pela mídia.
Sendo a escola uma
instituição responsável pela formação cidadã e tendo a Educação Infantil um de
seus principais objetivos a construção de uma autoimagem positiva de si, não há
possibilidade de furtar-se à responsabilidade de combater os estereótipos e
oferecer um repertório variado às crianças quanto à diversidade étnico-cultural
brasileira.
Os
currículos e práticas escolares que incorporam essa visão de educação tendem a
ficar mais próximos do trato positivo da diversidade humana, cultural e social,
pois a experiência da diversidade faz parte dos processos de socialização, de
humanização e desumanização. A diversidade é um componente do desenvolvimento
biológico e cultural da humanidade. Ela se faz presente na produção de
práticas, saberes, valores, linguagens, técnicas artísticas, científicas,
representações do mundo, experiências de sociabilidade e de aprendizagem
(GOMES, 2008, p. 18).
Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria
Machado e Ilustrações: Claudius - Editora: Ática
Nesta perspectiva, o projeto Igualdade na
Diversidade tem como uma de suas principais estratégias: explorar a temática
étnico-racial presente em obras de literatura infantil, bem como selecionar
obras que representem a diversidade da população brasileira em obras de
temática variada, sem estereótipos, possibilitando que as crianças construam um
repertório positivo da cultura e história afro-brasileira.
Entendendo, assim,
a importância do papel dos (as) educadores (as) na compreensão do processo de
classificação e hierarquização decorrentes do racismo abre-se a possibilidade
de discutir e intervir no impacto na autoestima das crianças e a importância de
refletir sobre a cultura negra, adotando práticas pedagógicas comprometidas com
o combate à discriminação racial, à “naturalização” das diferenças e a
diversidade da cultura brasileira. É imprescindível um posicionamento da escola
à adoção de propostas multiculturais e/ou interculturais e que o currículo
contemple a inserção da cultura negra.